Tempo de Recomeçar

Tempo de Recomeçar
"Essa história vai emocionar você"

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Marcas do Tempo * (Crônica)



Nietzsche estava certo quando escreveu: “A vontade é impotente perante o que está para trás dela. Não poder destruir o tempo, nem a avidez transbordante do tempo, é a angústia mais solitária da vontade”... Foi o que senti ao observar um senhor debruçado sobre o túmulo de sua esposa.

Em uma visita ao meu nono no cemitério, tal cena me chamou a atenção. Mas antes, o leitor deixe-me falar um pouco do meu nono (italiano). Já reparam como é estranha a visita ao cemitério? Não há ninguém abrindo as portas, nos recebendo com um sorriso, ou como o nono costumava fazer, sempre nos recebia com, além de um largo sorriso no olhar, uma xicara de café.

Como era ruim o seu café.

Mas quem teria coragem de enjeitar um agrado desses...olhávamo-nos compartilhando a angústia do primeiro gole, quando a xicara tocava os lábios o estômago se retorcia, esperando o líquido negro açucarado, quase melado.

Depois do café do nono (pobrezinho) bebíamos muita água, que era para lavar a memória gustativa do café deslizando em nossas pobres goelas. Tenho dúvida se eram seis ou sete colheres de açúcar bem cheias que ele colocava em pouco menos de um litro de água morna. Café morno é uma delícia, concordam?

Agora meu querido nono nos recebe com uma cruz em silêncio, flores murchas, velas nem sempre acesas, resumido em letras douradas que guardam suas datas e seu nome.

O que nos amarga a boca agora não é o café que ele nos preparava, mas a saudade que ele deixou. E não há água capaz de lavar o amargo da saudade. Enquanto minha mãe terminava suas orações, pus-me a caminhar pelos labirintos de pedra onde a vida não encontrou a saída, foi ali que observei o tal senhor debruçado sobre o túmulo da esposa. O homem de modos simples e castos realizava um verdadeiro ritual da saudade. Sentando as margens do túmulo da mulher, ele acariciava com uma delicadeza inenarrável a fotografia vitrificada da esposa. Disfarcei, mas foi inevitável desgrudar os olhos daquela cena. Ele tragava o cigarro com tanta avidez como quem fosse arrancar a mulher dos braços de mármore cinza que a guardava. Puxava fundo o fôlego, segurava a fumaça inflando as bochechas e depois, lentamente, varria os pulmões com suas lembranças, era como se ele quisesse se esvaziar da dor que estava sentindo.

Atrás do homem ficava imóvel um moço, que soube tratar-se do seu filho, quando ouvi-o pedir ao “filho” que fosse buscar um pouco mais de água.

O rapaz não demonstrava emoção alguma, apenas assistia ao pai sentado sobre a memória de sua mãe. Talvez o jovem não encontrasse espaço para a sua saudade, talvez a saudade do pai ocupava todas as cadeiras vazias da memória que ele tinha de sua mãe.

O homem de mãos grossas e amareladas do fumo ajeitava delicadamente as flores, puxava-as para lá e para cá, como se não encontrasse o lugar certo para o vaso. Para a direita, as flores encobriam o retrato da esposa, para a esquerda, uma teimosa flor amarela encobria-lhe o nome.

Depois, ele certificava-se de que a cera havia colado bem a vela que o vento insistia em apagar e, que ele, pacientemente voltava a acender. Em seguida ajeitava-lhe o cadarço do sapato, revira-se dum lado pro o outro, olhos feito anzóis no túmulo da amada. Acendia mais uma vela, dobrava um raminho verde, ajeitava um santinho de gesso na sepultura, talvez fosse essa maneira que ele encontrava de abraçar sua esposa.

O filho vez ou outra passava a mão sobre os ombros do pai, como a dizer: sinto muito, estou com você. E lá ia novamente as mãos do homem passear pela fotografia da esposa. Com as mãos na imagem dela, ele erguia os olhos para o céu, desviava o olhar nos lúgubres vizinhos de sua esposa e desaguava novamente na imagem da mulher.

Depois de algum tempo, o pobre homem ergueu-se com dificuldade, o tempo leva de nós, também as articulações; com a ajuda do filho ergueu-se, passou o lencinho umedecido mais uma vez sobre o túmulo e foi embora.

Fiquei pensando quantas lembranças ele não reviveu naquela realidade feita de pedras e flores artificiais, ali num lugar onde tudo é sempre nunca mais.

Quantos sorrisos, abraços, dores e lágrimas, ele e sua esposa compartilharam. A viuvez para quem se ama é o pior dos castigos, ainda mais quando se há compartilhado, provavelmente, mais da metade de vida juntos.

Não há dúvida de que quem vai leva metade, se não quase tudo de quem fica. Vi naquele senhor um meio homem, como se lhe faltasse uma das pernas, um dos braços.

Decididamente a frase de Nietzsche veste perfeitamente essa sentença, não há meios de vencer o tempo, de impedir que o destino bata a nossa porta, entre e depois despeça-se levando pelas mãos um de nós, um dos nossos;

Inevitável não pensar, haverá algum dia, meios de resgatar as nossas metades que o tempo levou?





(Cassiane Schmidt)

4 comentários:

Suziley disse...

Que bela crônica Cassiane. É o tempo, ninguém resiste a ele...fica a saudade daqueles que amamos e que já partiram. Um abraço, bom dia ;)

Luiz Carlos Amorim disse...

Muito bom o seu blog, Cassiane. Voltarei outras vezes.
Dê uma passada em Http://luizcarlosamorim.blogspot.com
Um grande abraço do Amorim

Socorro Melo disse...

Cassiane,

Fiquei muito emocionada com essa história. Nossa, imagino quanto sofrimento.
Eu que não consigo entender a morte como natural, sempre sofro e me choco diante de fatos assim.

Beijos
Socorro Melo

Gabriel Gómez disse...

Cassiane...Fiquei muito feliz com teu comentário no blog... Já estás na minha lista. Tuas letras e meus escritos estão encantados.
Beijo... Linda esta terra de palavras.